segunda-feira, 20 de junho de 2011

CIÊNCIA E RELIGIÃO

Química e religião

O conhecimento popular sobre a utilização de plantas tem alimentado pesquisas científicas no mundo todo. Com base nele, já foram desenvolvidos tratamentos para uma série de doenças. A CH de junho aborda o tema, com foco no uso religioso das plantas e na sabedoria por trás da cura pela fé. 
 
Química e religião
Muitas plantas produzem substâncias utilizadas como medicamentos ou alucinógenos, entre elas a maria-sem-vergonha (na foto). Dela são extraídas substâncias usadas hoje no tratamento da leucemia. (foto: Thegreenj/ CC BY-SA 3.0)
Os poderes mágicos das plantas curam desde diarreias, como o chá dos brotos de goiabeira, à leucemia, como as substâncias vincristina e vimblastina, extraídas da maria-sem-vergonha, hoje comercializadas para o tratamento dessa doença.
A magia que envolve a prática popular de cura pelas plantas deve-se à presença de substâncias produzidas pelos vegetais – muitas vezes, essenciais para sua sobre- vivência na luta pela preservação da espécie. Os terpenos, algumas substâncias fenólicas e alcaloides são as principais classes de substâncias produzidas pelas plantas. Falaremos um pouco sobre cada um deles.
No primeiro grupo, estão, por exemplo, o limoneno e o mentol, que têm cheiro agradável e são produzidos pelas plantas para atrair os polinizadores noturnos. Duas das muitas aplicações industriais dessas moléculas vão dar gosto a alimentos e aroma a produtos de limpeza. Já os flavonoides, pertencentes ao segundo grupo, protegem as plantas contra a radiação ultravioleta e, por esse motivo, têm propriedades antioxidantes.
Plantas que produzem alcaloides têm sido usadas como venenos e alucinógenos ao longo de nossa história
Os alcaloides, por sua vez, são substâncias que têm o elemento químico nitrogênio em sua estrutura e que produzem acentuado efeito no sistema nervoso central. Plantas que produzem alcaloides têm sido usadas como venenos e alucinógenos ao longo de nossa história.
Talvez, o caso de envenenamento mais conhecido tenha sido a condenação à morte do filósofo grego Sócrates por ingestão de uma bebida à base de cicuta (erva rica no alcaloide coniina).
Muitos alcaloides proporcionam efeitos alucinógenos, como a atropina e a escopolamina, usados na preparação de unguentos a partir das espécies beladona, meimendro e mandrágora, com as quais as ‘bruxas’ da Idade Média se untavam e que, supostamente, as faziam voar.
Esse unguento era conhecido como ‘fórmula de voo’ e utilizado pelas ‘bruxas’ em certas partes do corpo – principalmente, nas mais peludas – e também esfregado sobre o cabo de uma vassoura – que era, como sabemos, o ‘instrumento de voo’.
Em contato com as mucosas vaginal e anal, o uguento era absorvido mais rapidamente pelo organismo. A sensação de voo está associada aos delírios e, ao que parece, à sensação de levitação, fato que explicaria os supostos voos.
Outras propriedades alucinógenas proporcionadas pelo consumo desses alcaloides são: estado de embriaguez, seguido de sono profundo, acompanhado de amnésia. Hoje, a ingestão de escopolamina, associada a bebidas alcoólicas, é conhecida como ‘Boa noite, Cinderela’, mistura usada para dopar vítimas de assalto ou abuso sexual.

Cipó dos mortos

O uso de plantas alucinógenas está, muitas vezes, relacionado à prática religiosa. A religião deriva do termo latim religare e significa religação com o divino, definição que abrange quaisquer doutrinas ou formas de pensamentos metafísicos. Religiões, como o Santo Daime, a Barquinha e a União do Vegetal, foram criadas a partir do consumo da bebida chamada ayahuasca, preparada de plantas amazônicas.
Cipó yagé
O cipó yagé, ou caapi (na foto), é um dos ingredientes da bebida conhecida como ayahuasca, utilizada em seitas como a do Santo Daime. (foto: Wikimedia Commons/ Rafael Guimarães dos Santos)
Ayahuasca é uma palavra de origem indígena e significa cipó dos mortos (aya = pessoa morta, alma, espírito; waska = corda, cipó). É preparada a partir do cipó yagé ou caapi (Banisteriopsis caapi) e das folhas do arbusto chacrona (Psychotria viridis), ambos contendo alcaloides.
As tradições de cada local e a ocasião de consumo dessa bebida determinam os métodos para o preparo, mas o processo é longo: dura cerca de 24 h. Normalmente, raspa-se a casca dos pedaços recém-cortados do talo do cipó, que, em contato com a água e as folhas de Psychotria viridis, dão origem a ayahuasca – os métodos para o preparo variam segundo as regiões onde o chá é consumido e são semelhantes ao preparo de extratos aquosos nos laboratórios de pesquisa de química de produtos naturais.
Em algumas regiões, as cascas devem ferver por várias horas, e o líquido amargo e denso resultante é consumido em pequenas doses. Esse procedimento é uma extração aquosa a quente, e o produto final é um chá com elevadas quantidades de substâncias retiradas das plantas. 
O método de preparação, a quantidade ingerida, o número e o tipo de misturas determinam os efeitos que a ayahuasca proporciona
Em outras regiões, são consumidas doses maiores de ayahuasca, pois o preparo consiste em amassar as cascas pulverizadas com água fria, tornando-se uma preparação menos concentrada, ou seja, observa-se um chá com coloração mais clara, indicativo de baixas concentrações de substâncias extraídas das plantas.
O método de preparação, o contexto no qual a bebida é consumida, a quantidade ingerida, o número e o tipo de misturas determinam os efeitos que a bebida proporciona. Alucinações visuais, diarreia e vômito podem ser observados com o uso regular da ayahuasca. Taquicardia e morte em casos de intoxicação.

Márcia R. Almeida
Sabrina T. Martinez
Instituto de Química
Universidade Federal do Rio de Janeiro

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